COALHADA
Por Marcio Aurelio Soares*
Toda a minha geração o conhece, talvez uma geração anterior também. Os mais jovens talvez não o conheça. Escritor, roteirista, pintor, ator, considerado um dos maiores do humor brasileiro, fez sucesso na televisão com seu programa semanal Chico City.
Chico Anysio era genial. Quem não conheceu seu trabalho, teve a oportunidade de assistir ao seu filho, Bruno Mazzeo, em reedição da Escolinha do Professor Raimundo anos depois. Com mais de 300 personagens, quem não se lembra de Pantaleão, velho contador de história: “É mentira Terta? Verdaaaade”, ela respondia. Tim Tones, o pastor charlatão e manipulador? E O Baiano e os Novos Caetanos, sátira aos tropicalistas, feita em parceria com Arnaud Rodrigues?
Podíamos ficar por páginas escrevendo sobre a obra de Chico Anysio, tal a riqueza de sua arte. Quem tiver interesse, acho uma excelente inciativa, as redes sociais estão repletas de material produzido por ele.
Meu tempo de corte aqui é a segunda metade dos anos de 1970. Início dos estertores da ditadura, que vinha sistematicamente, torturando e matando jovens universitários, jornalistas e intelectuais. O Rio de Janeiro estava se reoxigenando e o humor, utilizando metáforas, fazia parte desse movimento. Outro grande espaço era o Caderno B do Jornal do Brasil. Isso é histórico: a implantação de um regime autoritário passa, necessariamente, pela destruição dos movimentos culturais. Cultura é sinônimo de arte, originalidade, espontaneidade, pensamento crítico – o que menos quer um regime autoritário. Mas no final dos anos de 1970, os movimentos sociais e culturais começavam a ressurgiram das cinzas, brotando em cada esquina, cada universidade. E o JB cumpriu um grande trabalho neste sentido, com críticos de música como Tarik de Souza, Ana Maria Bahiana e Sergio Cabral (pai), e participação de jornalistas do naipe de Zuenir Ventura, Ruy Castro, Carlos Drumond de Andrade, Clarisse Lispector, o grande Nelson Rodrigues e tantos outros.
Os tempos, portanto, eram de retomada da agitação sindical, política, social e cultural. Foi neste contexto que meu personagem entrou para a faculdade, ainda sem perceber onde exatamente estava se metendo, um espaço que significava muito mais que uma escola de medicina. Ingênuo, suas aulas começaram três meses após se recuperar da fase aguda de uma doença neurológica que o deixaria com sequela motora por anos de sua vida.
Aquele ano, foi o ano da virada. Geralmente, na chegada à universidade, os calouros eram submetidos a todo tipo de escracho, do corte de cabelo a marcharem em fila única e pedirem dinheiro no sinal para a festa dos calouros. Aquele ano foi o último que rasparam a cabeça da galera e as brincadeiras com os calouros passaram a girar mais entorno de acolhimento e festas para entrosamento com os veteranos. Assim, quando nosso personagem chegou, ainda com dificuldade para andar, o blindaram do corte de cabelo e dos escrachos mais radicais. A partir do acolhimento a um colega com restrição física, começaram a perceber que poderiam agir da mesma forma com todos os outros calouros e calouras, estas, já naquela época, formando maioria nas Universidades. Até que chegou um gaiato e saiu com essa: “Pique no lugar, flexão...” O pobre do calouro, que, como disse, àquela altura tinha dificuldade para caminhar sozinho, não pensou duas vezes, ensaiou alguns passos para entrar na brincadeira. Seu gesto marcou sua passagem na faculdade, agora ele era o Coalhada, personagem de sucesso de Chico Anysio. Como Coalhada, foi diretor do Departamento Cultural do Diretório Acadêmico, época em que colaborou com a organização de festivais de poesia, música e teatro dentro da escola. Neste caso, como em tantos outros, o riso e a solidariedade fizeram uma revolução.
* Mèdico - Editor do Portal RT