É SÉRIO ISSO?
Por Marcio Aurelio Soares*
“Vocês não vão me perguntar sobre o ato de racismo que sofri? Aqui nós estamos em fase de formação”. Assim começou a entrevista do jogador Luighi, 18 anos, atleta da equipe do sub-20 do Palmeiras, para os jornalistas após o jogo contra o clube Cerro Porteño, do Paraguai.
Luighi falou com a alma de quem sofre, sangrou pelos olhos, não de ódio, mas de imensa tristeza. Conseguiu sensibilizar meio mundo. Do Presidente do Brasil ao Presidente da FIFA, de torcedores, ao jogador Vini Jr, símbolo da luta antirracista no futebol. Outro meio mundo, certamente numa dimensão muito menor, continuou achando tudo isso mimimi, exagero. Uns se remetendo a seu tempo de garoto, quando chamavam seu colega de classe de neguinho, ou à negra de pele clara, de mulata.
Vamos começar do início. O Brasil foi o país que mais escravizou africanos e por mais tempo. Entre os séculos XVI e meados do XIX; portanto, em 350 anos, foram trazidos ao Brasil cerca de 4 milhões de africanos. Ainda estima-se que aproximadamente 2 milhões deles, entre homens, mulheres e crianças, tenham morrido durante as viagens entre os continentes africano e Brasil.
A Lei Aurea, de 13 de maio de 1888, não foi uma concessão benevolente de um governo decadente, mas sim o resultado de uma longa e intensa luta de pessoas escravizadas, por meio de fugas, formação de quilombos, revoltas e participação em movimento abolicionistas, que pressionaram a corte pelo fim da escravidão; associado à pressão da Inglaterra que buscava ampliar o mercado consumidor de seus produtos no Brasil, expectativa não atendida pela falta de uma política de inclusão social para os ex-escravizados. Pelo contrário, eles não tiveram acesso a reparações necessárias e continuaram a enfrentar desigualdades e marginalização após o fim da escravidão. Sem proteção social, ocuparam as periferias e morros, sobrevivendo de trabalhos temporários e superexplorados. Continuaram analfabetos e marginalizados pela sociedade. Passados 137 anos, pouco avançamos: cerca de 70% da população carcerária é formada de negros, a taxa de analfabetismo entre negros chega a 9% e, somente, 20% dos jovens negros entre 18 e 24 anos estão matriculados no ensino superior. Não sou pessimista; tenho consciência do quanto avançamos nos últimos anos. Políticas de cotas raciais em universidades públicas e concursos públicos têm contribuído para aumentar a presença de negros no ensino superior e em cargos de maior qualificação. Programas sociais, como o Bolsa Família, ajudaram a reduzir a evasão escolar entre crianças e jovens negros, e, mais recentemente. o Programa Pé-de-Meia tem auxiliado jovens cursam o ensino médio.
Sou do tempo em que o Mussum entrava em nossas casas pela TV carregando uma garrafa de cachaça debaixo do braço. Era considerado um humor ingênuo, mas que transmitia mensagens que, hoje, seriam inadmissíveis. Foi um tempo que não existe mais.
O jovem atleta do Palmeiras sentiu na alma sua ancestralidade sofrida, torturada nos porões dos navios negreiros. Sua história, conforme declarou, ficará marcada por esse momento. Mas que assim seja também para os que, como eu, são homens brancos, heterossexuais, de meia-idade e de classe média alta. Tenho a ancestralidade do opressor, e preciso reconhecê-la; mas também possuo a sensibilidade humanista, que me faz compreender a relevância da história de nosso país, com suas injustiças e desigualdades. A luta de Vinícius Jr, Luighi e todas as negras e negros do Brasil deve ser de todos nós. Caso contrário, assistiremos à grande imprensa veiculando ideias de que o carnaval tem sido muito igual entre as escolas, pois “só falam de religiões de matrizes africanas”. Ora, seu “cara-pálida”, você gostaria que a periferia marginalizada falasse de quê? do Superman? Da Mulher Maravilha? O super-homem é aquele que carrega marmita, passa 3 horas no transporte público para chegar ao trabalho e ainda é chamado de neguinho por você.
* Médico - Editor do Portal RT