FALO TU COMO TU
Marcio Aurelio Soares*
Meu tio, já falecido, apesar de ter pouca escolaridade, falava um português irretocável e era extremamente prolixo. Uma pequena história poderia levar horas para ser contada. E o pior é que o danado gostava de conversar e tinha nome de filósofo grego. Eu não sei de onde meu avô português, semianalfabeto, tirou essa ideia de dar nomes complicados aos filhos: Aristóteles, Sócrates, Heráclito; só faltou Parmênides. Isso me fez lembrar de um paciente que, anunciado por mim na sala de espera, entrou no consultório com um largo sorriso e já se defendendo: 'Meu nome é Napoleão, mas não sou Bonaparte'. Contou-me, em seguida, que, certa vez, ainda adolescente e, portanto, meio abusado, foi parado pela polícia. Indagado sobre seu nome, repetiu a fala que fez para mim, recebendo um tabefe na cara como consequência; e riu à vontade. Começamos bem nossa consulta.
Mas voltemos ao caso do meu tio. Na época, tínhamos telefone fixo, um artefato hoje em desuso e desconhecido para essa geração, tanto quanto desconhecíamos o celular inteligente, também chamado de telemóvel ou smartphone, conforme sua referência, pois ainda não havia sido inventado. Enfim, estou sendo prolixo; será que isso é genético. O telefone tocava. Se era o meu tio filósofo do outro lado da linha, isso já era motivo suficiente para não haver ninguém em casa. Quem atendesse já sabia o que dizer: 'deu uma saída', 'tá tomando banho'. Conversar com um filósofo por horas não era uma tarefa fácil; e, definitivamente, por telefone, seria ainda pior. É certo que o remorso batia, mas não o suficiente para atendê-lo todas as vezes. Não só porque ele era prolixo, mas porque, na verdade, acabava sendo um chato. Eu falava 'tu', e toda vez que dizia 'tio, quando tu vai no vô?', vinha o sermão: 'Você é uma pessoa culta, estudada, não pode falar sem a concordância verbal devida'. Com um sorriso nos lábios, sem que ele percebesse, eu fingia que não ouvia e repetia minha indagação: 'Afinal, tu vai ou não vai?'. Ele achava que eu fazia isso para irritá-lo e, apesar de ser muito querido, ele tinha um pouco de razão. A verdade é que nós, descentes de portugueses, falamos tu, mais do que falamos você; como no sul, sendo que lá, eles concordam conforme a regra gramatical e falam “tu vais, tu sabes”.
A língua é um organismo vivo que evolui com o tempo e se adapta aos costumes, culturas e realidades locais. Isso mostra que a linguagem não é apenas uma forma de comunicação, mas também um elemento essencial da identidade de um povo. Repreender quem fala e age conforme sua cultura, entendendo isso como uma dimensão muito maior do que a escolaridade, além de ser deselegante, é negar o saber popular e perder a oportunidade de entender melhor onde o falante, e talvez você também, vive.
Se eu falo tu, como cará e vou a praia no canal 3, tu já sabe de onde sou, de onde venho.
A compreensão sobre o mundo começa por pensarmos sobre nós, nossos nomes, formas de falar e andar; é refletir sobre quem somos, nossas angústias, nossas felicidades e nosso entendimento sobre o mundo. O escritor russo Leon Tolstói (1820-1910) diz em seu livro 'Guerra e Paz': 'Fale de sua aldeia e estará falando do mundo'.
Mundo... aqui se fala 'tu vai', e meu escritório é na praia.
*Médico