Mulheres, raça e classe
* Alcione Marinho de Moura
Nessa obra incrível, Angela Davis discorre sobre a origem da dicotomia entre o feminismo das mulheres brancas de classe média e das mulheres negras, que foi agravada após a Guerra Civil americana (1861-1865), com a promulgação da 15ª e 16ª emendas concedendo o direito ao voto para os homens negros, cerca de 4 milhões de votos para o Partido Republicano; e com a Lei de linchamentos.
Gangues racistas mataram mais de 10.000 pessoas, a grande maioria negras, de forma brutal, além de ataques sexuais contra mulheres negras; protegidas por tal Lei. A partir desse momento, a associação das sufragistas passou a não aceitar mais mulheres negras no movimento, com medo de perder as filiações das mulheres sulistas brancas.
Apesar de várias mulheres, brancas e negras, terem se unido para conseguir educação para a população negra do Sul, a união de mulheres sufragistas chegou a propor que o voto fosse concedido apenas às pessoas alfabetizadas, pois, desta forma, eliminariam as pessoas negras; numa posição claramente racista.
Também relatou a dicotomia entre os trabalhadores do campo, geralmente negros; e os operários, brancos ou estrangeiros, a partir de 1920.
A base de cunho racista do movimento antiestupro foi dada pelo mito do estuprador negro; e, também, que a mulher negra é fácil e promíscua (culpar a vítima pela agressão). O uso do estupro como arma rotineira de repressão pela supremacia branca já era utilizado desde a escravidão. Houve utilização de acusações fraudulentas de estupro como pretexto para os linchamentos; como consequência, nasceu o engajamento das mulheres negras contra os linchamentos, uma luta de quase 40 anos.
Em 1930, foi criada a Associação das Mulheres do Sul pela Prevenção dos Linchamentos para dar um fim aos atos de vingança pessoal e selvageria em nome das mulheres. Reforçando o papel das mulheres brancas na luta contra o racismo e a dominação masculina, muito mais rígida no sul do país. A encruzilhada do racismo e do sexismo, é nesse ponto violento, na imagem do ameaçador estuprador, que retira das mulheres o direito de ir e vir, e todas as suas aspirações.
É no trabalho que as mulheres são mais vulneráveis ao assédio sexual. Estupro, como forma de compensação ilusória à falta de poder. A epidemia de estupros é uma das facetas de uma profunda e contínua crise do capitalismo. Não pode ser tratado como um fenômeno isolado. A luta contra o racismo deve ser um tema contínuo do movimento antiestupro.
O controle da natalidade é um pré-requisito fundamental para emancipação de todas as mulheres. Mas não tinha engajamento das mulheres negras devido às práticas abusivas de esterilização, de cunho racista. Direito para as mulheres privilegiadas e dever para as mulheres pobres. Até 1932, o movimento eugenista aprovou, em 26 estados, leis de esterilização compulsória; foram criadas clínicas de esterilização compulsória financiadas pelo Departamento de Saúde. Cerca de 65% foram esterilizações de pessoas negras.
Tarefas domésticas constituem elementos essenciais da opressão feminina, trabalho degradante e não remunerado. Metade da população mundial não é remunerada. Foi criado o Movimento pela Remuneração do trabalho doméstico na Itália, em 1974. Mas, segundo a autora, uma simples remuneração vai atingir a liberdade psicológica. A dona de casa vira o seu trabalho. O caminho seria a socialização da criação dos filhos e das tarefas domésticas.
O melhor do livro é a isenção da autora em não chegar a conclusões precipitadas, como historiadora fez uma brilhante análise de fatos que influenciaram na divisão do feminismo branco e negro. Também aguçou minha curiosidade em saber se em algum momento as sufragistas brasileiras tomaram uma atitude racista, mas este será um tema para outra discussão.
Claro que não tivemos uma guerra civil, nem leis de linchamentos, nem clínicas de esterilização compulsórias no Brasil; mas, infelizmente, chegamos num mesmo quadro de desigualdades sociais que aceitam a violência contra as mulheres, os negros e os pobres; e a normaliza.
“Toda desigualdade e limitação impostas à mulher branca são agravadas mil vezes para as mulheres negras, triplamente exploradas como negras, como trabalhadoras e como mulheres” Elizabeth Gurley Flynn, em 1937.
Ter privilégios não é uma questão de opção, mas a consciência dessa posição, aumenta nossas responsabilidades, pelas atitudes e omissões.
* Alcione Marinho de Moura é médica, mãe, trabalhista e feminista.
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