SEU MENTIROSO
Por Marcio Aurelio Soares
Não estou duvidando de seu caráter. Estou afirmando que todos nós mentimos, deturpamos, inventamos histórias conforme o nosso olhar sobre a realidade que um dia vivemos.
E assim é. A escritora espanhola Rosa Montero, em seu livro A Louca da Casa, reflete bem sobre isso. Diz ela: “A narrativa é a arte primordial dos humanos. Para existir, precisamos nos contar. E, nesse processo, não faltam lorotas: mentimos, imaginamos, enganamos a nós mesmos. O que lembramos hoje da infância pode ser muito diferente do que lembraremos daqui a vinte anos”.
Essa “mentira” é, na verdade, um ato de criação: escolhemos quais memórias valorizar, quais detalhes destacar e quais emoções preservar. Assim, nossa identidade não é fixa, mas uma narrativa em constante evolução, moldada pelas histórias que decidimos contar — e acreditar.
Neste processo, o esquecimento, que é frequentemente associado à decrepitude, é, na verdade, essencial para nossa saúde mental. Já pensou se lembrássemos de tudo o que vivemos, nos mínimos detalhes, a todo instante? Certamente enlouqueceríamos. Além disso, a memória não apenas seleciona o que queremos lembrar, mas também passa por processos naturais, como o sono. Quando estamos cansados, fechamos os olhos e, antes de adormecer, um turbilhão de lembranças desconexas pode surgir. Depois, conforme relaxamos, nossa mente reorganiza essas memórias, descartando algumas e ajustando outras. É assim que o sono nos ajuda a reconstruir nossa história — e, às vezes, até a torná-la um pouco melhor do que realmente foi.
E é justamente essa capacidade de reinventar nossas memórias que nos torna grandes contadores de histórias. Afinal, se todos tivéssemos a mesma percepção das experiências vividas, seria um verdadeiro desastre. George Orwell nos mostrou isso muito bem em seus livros, especialmente em 1984, escrito em 1948. Desde então, a obra nos alerta para os perigos de uma narrativa única imposta por um regime totalitário, onde a manipulação da história e da linguagem se tornam ferramentas de controle e opressão. 1984 nos lembra que a liberdade de expressão e o direito de contar nossa própria história são fundamentais para uma sociedade democrática e criativa. Cada pessoa, com sua vivência única, contribui para um mosaico de narrativas. A diversidade de experiências e perspectivas é o que mantém a vitalidade e a pluralidade da nossa cultura.
Uns são mais contadores de histórias do que outros, chegando aos religiosos, que se autointitulam intérpretes do passado e tutores do futuro; não tenho interesse por isso — talvez porque não me interesse por um futuro que não consigo enxergar e eu seja mentiroso o suficiente para inventar outro, assim como eu faço com o passado.
Com essa capacidade, escritores e artistas têm o privilégio de viver vários personagens, absorvendo o melhor de cada um. Porém, há quem diga, como o escritor Oscar Wilde, que “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”, sugerindo que as criações artísticas têm o poder de transformar a realidade ao inspirar novas formas de pensar e agir.
E assim seguimos, tecendo histórias e reinventando o passado, porque, no fim, somos todos grandes mentirosos — ou, se preferirmos, apenas contadores de histórias.
*Médico